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Sexta-feira, 06 de dezembro de 2024

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o joio e o trigo

Reportagem especial mostra que projeto de "Independência indígena" foi ideia de Bolsonaro

06 Set 2022 - 16:56

João Peres, Marcos Pomar e Tatiana Merlino - O Joio e o Trigo

Foto: Marcos Hermanson

Área de lavoura na Terra Indígena em Sangradouro

Área de lavoura na Terra Indígena em Sangradouro

Matéria especial do "Joio e o Trigo" publicada na última semana traz entrevista com o empresário do agronegócio José Nardes, de Primavera do Leste, que mostra que o projeto de "Independência indígena" foi ideia do atual presidente Jair Bolsonaro (PL), quando ainda era deputado. O agricultor, durante a entrevista, questiona diversas vezes as perguntas dos jornalistas, e prefere não responder perguntas 'espinhosas' sobre o real funcionamento das cooperativas agrícolas em terras indígenas de MT. 


Leia a íntergra:

“Foi ideia do Bolsonaro”, afirma ruralista sobre cooperativa agrícola em terra indígena no Mato Grosso

José Nardes bateu na mesa, pediu RG e CPF da reportagem, disse que é amigo pessoal do presidente da Funai e que o projeto veio para dar dignidade aos Xavante “para eles serem cidadãos normais como nós somos”

São 10 horas em Primavera do Leste, no Mato Grosso, quando a caminhonete Ranger se aproxima e estaciona. Dela, desce o produtor rural José Otaviano Ribeiro Nardes. “Tem alguém com Covid?”, pergunta, ao nos ver usando máscaras. “Quem tem medo de morrer, morre cedo”, diz, criticando a proteção usada pela equipe de reportagem.

Estamos no Sindicato Rural de Primavera do Leste, do qual o produtor é membro e já foi presidente. Nardes tem 72 anos, e é um homem alto e forte. Ele veste uma camisa de manga comprida para fora da calça e usa uma corrente dourada com um crucifixo de uns 5 centímetros. No pulso, um relógio de marca rolex. 

“Nosso projeto está sendo muito procurado. Tem jornalistas de esquerda que estão aproveitando a oportunidade para saber detalhes do projeto e usam [as informações] de má-fé. E a gente sabe como é a esquerda. Se tu pudesse dar mais informações a teu respeito”, disse, por mensagem de áudio, na véspera, quando a entrevista foi solicitada.

Nardes senta à cabeceira da sala de reuniões do sindicato, e demora mais de meia hora para permitir que liguemos o gravador para o início da entrevista. Numa das paredes da sala, há um pôster com o nome e a foto de todos os integrantes do sindicato. Na outra, uma foto ampliada do sindicato e suas imediações, ocupando todo o espaço. Há, também, uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida, que o ruralista conta com entusiasmo ter ganhado do cantor de sertanejo Daniel.

Legado

Quando finalmente autoriza que o gravador seja ligado, ele fala, por vinte minutos, sem permitir perguntas, sobre a Farm Show, feira de agronegócio da qual é um dos idealizadores. “A Farm Show explodiu depois da presença do Bolsonaro, em 2017, porque nós usamos a figura dele. Ele disse: ‘Nardes, o que tu precisar de nós, se eu for eleito presidente’”, conta o produtor. “A Farm Show e o projeto de independência indígena são um legado que vamos deixar.”

O ruralista refere-se ao projeto Agro Xavante, ou Independência Indígena, uma parceria de produtores rurais ligados ao Sindicato Rural de Primavera do Leste, do governo do Estado do Mato Grosso, por meio da superintendência de Assuntos Indígenas da Casa Civil de Mato Grosso e da Funai, que criou uma cooperativa agrícola para produção de soja e arroz dentro da Terra Indígena Sangradouro, do povo Xavante.

Nardes é um dos produtores “parceiros”. Segundo ele, o projeto foi uma ideia de Bolsonaro. “Ele esteve aqui em 2017. Eu já conhecia ele em função do meu irmão, que foi colega dele três, quatro mandatos.” O irmão do produtor de soja é o ex-deputado federal e atual ministro do TCU Augusto Nardes. “Ele [Bolsonaro] pediu esse projeto. Nós compramos a ideia dele. Ele falou pra nós, ‘se eu for eleito presidente, meu sonho é a independência indígena’. E nós já tínhamos tentado. Tentaram, quatro, cinco vezes. Chegamos a um ponto até que o Ministério Público foi lá e mandou a Polícia Federal prender até os produtores.” 



O projeto só foi possível também, explica, graças ao apoio da Funai e do seu presidente, Marcelo Xavier. “O projeto foi feito dentro da própria Funai, com ajuda dos funcionários da Funai.” Xavier visitou a Terra Indígena Sangradouro em abril de 2021, no Dia de Campo, evento que marcou o início da colheita de arroz no território. 

Nardes acredita que Bolsonaro e Marcelo Xavier fizeram um “trabalho importante” no órgão indigenista. Antes, explica, “o setor do agro não tinha acesso à Funai. O Bolsonaro mudou 100% a Funai. Ele botou um coronel [na verdade, Xavier é delegado] da Polícia Federal, que é meu amigo particular. E ele deu acesso a nós. Eu conheci ele [Marcelo Xavier] por indicação do presidente”, que teria dito: “Nardes, procura o Marcelo, agora nós vamos conseguir fazer o projeto.” 

Antes e depois

Para ele, a Funai vive um antes e um depois: “Ele conseguiu tirar mais de 80% dos funcionários que não faziam nada. Hoje, tem sala de 200 metros quadrados com uma ou duas pessoas trabalhando, onde trabalhavam 100, 200 pessoas. No Ibama o Bolsonaro já não conseguiu fazer o que fez na Funai”, afirma.

Parecia um presságio. Um mês depois da nossa conversa, o Ibama esteve em Sangradouro e autuou os quatro fazendeiros por desmatamento ilegal – quase 1.500 hectares foram derrubados, 500 hectares a mais que a informação oficial sobre o Agro Xavante.

Por volta de meia hora após o início da conversa, o assessor de imprensa do sindicato entra na sala. Nardes lhe entrega o crachá da reportagem, que havia pedido no início da conversa: “Fabrício, vou te dar o crachá da Tatiana para você ficar conhecendo e depois ver o histórico dela para nós.” 

Assim que chegamos, Nardes também pediu que o pesquisador que nos acompanhava tirasse a máscara. “Quero ver você sem máscara. Porque depois eu encontro o senhor na rua e não sei quem é. Vamos falar de cara limpa que é melhor.”

Ainda no início da entrevista, o produtor rural disse: “Estamos vivendo uma fase no país que não se pode mais confiar em ninguém, temos que ter cuidado. Inclusive eu falei para o Gerson: ‘Não me dê mais entrevista’”, referindo-se a Gerson Wã raiwe, presidente da Cooperativa Indígena Grande Sangradouro (Cooigrandesan). Nardes disse que ele “ainda tem problemas”, mas vai para a Espanha representar o Brasil. “Foi uma pessoa que pegamos na aldeia e nesse período de um ano e quatro meses ele se transformou no que é hoje.”

Durante a conversa, Nardes coloca-se no centro do projeto, como principal articulador. “O Agnaldo é independente, ele tem a vida dele. Ele está na secretaria porque eu coloquei ele lá. Ele era um simples cidadão de Poxoréu e a gente colocou ele lá em Cuiabá.” Agnaldo Santos é o superintendente de Assuntos Indígenas da Casa Civil de Mato Grosso, responsável por articular outras “parcerias” entre fazendeiros e lideranças indígenas. 

Pergunta ‘besta’

Ao longo da entrevista, o ruralista riu, gritou e deu tapas na mesa. Questionado sobre o quanto investiu e o quanto teria de lucro no empreendimento, Nardes disse três vezes que a pergunta era “besta”. 

“Tu vê a pergunta besta que ele fez? É que não pensam, não adianta querer mudar a cabeça de você, jornalista. Não vou conseguir mudar.” E seguiu, “você não entende da coisa e a gente fica até chocado com certas perguntas”. 

Quando afirmamos que papel de jornalista é fazer perguntas, ele retrucou: “Tá, mas tem que ter embasamento mínimo. É por isso que eu não recebo. Eu recebo 10% dos jornalistas que pedem pra falar comigo, porque eu tenho que ensinar tudo pra eles.” E disse, também, aos gritos: “É por isso que eu quero a identidade de vocês, exatamente por isso, porque tu pode distorcer o que estão falando aqui.” 

Nascido no Rio Grande do Sul, Nardes é agrônomo e tem mestrado em Economia Rural. No cartório de imóveis de Primavera do Leste, o Joio encontrou quatro propriedades rurais em seu nome, totalizando 1.489 hectares. Em outras palavras, caso o Agro Xavante dê certo, Nardes terá à disposição, ainda que durante poucos anos, de até 2.000 hectares adicionais de terras. “Vim para cá trabalhar de empregado em 80, como agrônomo. E hoje eu sou empresário, entendeu, então, a história? Imagina o que era isso, aqui, tem noção? Quando eu cheguei em Primavera tinha cinco, seis casas, um posto de gasolina com duas bombas, um hotelzinho de piso de chão.”

Hoje, Nardes é uma das principais lideranças ruralistas da região e o principal produtor do projeto Agro Xavante. ”Eu tenho uma parceria com nosso presidente. Eu sou de direita, sou conservador, o cara que mais trabalha por ele aqui no Mato Grosso somos nós aqui”.

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Você doa a semente, a gente a cultiva e te entrega os frutos.APOIAR“Tenho acesso a tudo em Brasília”

Em setembro de 2019, o fazendeiro esteve em Brasília, onde teve audiência com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e com os deputados Eduardo Bolsonaro, Nelson Barbudo e Neri Geller. Reuniu-se também com seu irmão, Augusto Nardes. “O presidente [do Sindicato Rural] obteve a adesão do Tribunal de Contas da União-TCU ao projeto, através do Ministro Augusto Nardes, que já desenvolvia um projeto paralelo na aldeia Raposa do Sol no estado de Roraima”, diz um texto publicado no site da Farm Show. 

O produtor disse que tem “essa facilidade” por ter um irmão que é ministro. “Eu tenho acesso a tudo em Brasília. Através dele, através de meus amigos, não só pelo meu irmão, pelo conhecimento que a gente tem, mas tudo o que mexe nesse país. Quando conseguimos um projeto com pedido do Bolsonaro, em 2017, ele [Bolsonaro] ficou na minha casa. E ele, como deputado federal, já conhecia o meu irmão, esse que é ministro. Ele teve cinco mandatos federais. Eles eram os dois do PP, Partido Popular, então já conhecia ainda mais”, explica.

Na véspera da entrevista realizada no sindicato, Nardes havia mandado para a reportagem uma série de mensagens, fotos e vídeos de propaganda do projeto, entre eles a menção a uma visita do ministro do TCU ao projeto Independência Indígena. “Envio um histórico do projeto para você ter melhores informações”, disse.

“Abrir área” de 11 mil hectares

De acordo com os contratos de cooperação firmados entre os produtores e os indígenas que a reportagem teve acesso, a intenção do projeto é “abrir uma área” de 11 mil hectares, mas os envolvidos no projeto divergiram ao falar do tamanho da área que pretendem desmatar para a lavoura mecanizada – inicialmente, seriam 1.000 hectares, mas a cooperativa já protocolou pedido para ampliar para 6.000 hectares. “Mas ele está parado. Eu devo ir a Brasília na semana que vem e vou pegar um outro meio para o Ibama liberar. Porque os indígenas querem trabalhar.”

Quando foi questionado sobre a intenção de aumentar a lavoura, novamente Nardes subiu o tom de voz: “Está tudo no vídeo que te mandei”, gritou. “Não vem com essa, mas não vem com essa, cara. Você não pode escutar um vídeo das dez à meia noite. Vocês vão dormir, vão tomar cerveja..”. Após insistência, disse que o projeto é para dez anos e que a intenção é atingir um total de oito mil hectares. 

O grande segredo da chamada “Independência Indígena”, afirma Nardes, é que “nós vamos começar a diminuir o assistencialismo, para eles andar com as próprias pernas”. Cada etnia, diz, “tem uma maneira, um comportamento. Os Parecis são muito mais avançados nesta área do que no Xavante”, acredita. E a grande “finalidade” do projeto, é “englobar educação, saúde, alimentação e dignidade. Essa é a palavra-chave. Eles não têm dignidade”, afirma. 

“Se você não tem a educação que eles tiveram, o que tu era hoje? Era um Xavante. Eles não tiveram educação. O projeto é para dar dignidade para eles, para mudar o comportamento de querer ser cidadão normal como nós somos.” 

Os contratos da “parceria” preveem que 80% da produção agrícola fique com os fazendeiros e apenas 20% com os indígenas. Mas, quando questionado sobre sua participação nos lucros do projeto, Nardes disse: “Eu não preciso disso, cara. Eu tenho quatro fazendas, cara. É isso que vocês não entendem, o que esse louco está fazendo para ajudar os indígenas?”

E seguiu: “Vocês têm que entender uma coisa. O Cerrado brasileiro, a terra é muito pobre. Ela não tem nada. Agora, imagina pegar um cerrado daqueles e fazer ele produzir. Eu vou gastar no mínimo dez, doze mil por hectare. No primeiro ano, na primeira safra. Eu transformei a terra, que valia R$ 20 mil em R$ 200 mil, e não vai ser minha terra, é do Estado. E eu não consigo recurso em banco nenhum para financiar uma terra do Estado que o índio é o posseiro. Tenho que tirar do meu bolso e investir lá.”

Quando a conversa caminhava para o fim, o ruralista deu um recado: “Se você não estiver satisfeito com o Brasil, vai para a Venezuela, cara, está do lado, vai pra Argentina.” E concluiu: “Por isso que eu estou dizendo para vocês que sigam o caminho do bem. Se querem ter vida curta, façam coisa errada.”
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