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Terça-feira, 29 de outubro de 2024

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chuvas e secas intensas

'Sem estabilidade climática, agronegócio deve ter queda de produtividade’, alerta especialista

Foto: Arquivo Pessoal

'Sem estabilidade climática, agronegócio deve ter queda de produtividade’, alerta especialista
Neste ano, enquanto diversas cidades mato-grossenses enfrentavam inundações por conta das chuvas intensas, produtores de várias regiões do estado também relataram avarias e podridão nos grãos de soja da safra de 2021. Os eventos ocorrem um ano após a publicação do último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), que apontou que o ciclo hidrológico da terra estava se intensificando e deveria ocasionar chuvas e secas mais intensas. 


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O relatório deste ano deve ser publicado na próxima segunda-feira (28) e o seu rascunho, obtido com exclusividade pelo portal UOL, sinaliza, novamente, impactos das mudanças climáticas, mas dessa vez com um alerta explícito para a produtividade do agronegócio brasileiro. Para entender a relação, o Agro Olhar conversou com a especialista em governança climática Alice Thuault, diretora executiva do Instituto Centro de Vida (ICV), organização que atua em Mato Grosso. 

“O agronegócio brasileiro que faz a matriz econômica de Mato Grosso girar, aquele que é de ponta, tecnológico, modernizado, que produz soja em Mato Grosso, é um agronegócio que precisa de dados e de estabilidade climática, mas isso a gente já perdeu. A gente já sabe que os [impactos nos] modelos de precipitação, modelos de evapotranspiração, estão acontecendo e vão acontecer”, explica Thuault. 

Há 15 anos, Alice trabalha em Mato Grosso. No ICV, a especialista ajudou a construir políticas ambientais de controle do desmatamento e de mitigação de mudanças climáticas, além de estruturar programas de monitoramento da situação socioambiental em Mato Grosso.

Complementando os alertas do IPCC, ela comenta estudo feito pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) a pedido do Fórum Mato-Grossense de Mudanças Climáticas (FMMC). Sobre o tema, ela alerta que os impactos das mudanças climáticas devem atingir vários fatores do agronegócio, tanto pelo clima, quanto por eventos extremos, como as chuvas intensas que atingem cidades no estado e no país. 

“Atinge tanto pelo clima, quando você tem um aumento de temperatura, de precipitação (chuvas), mais incêndios, quanto pelos eventos extremos, que a gente tá vendo, ondas de calor, secas, desastres naturais, pela qualidade do solo, [porque] você vai ter menos água nos solos. [Tem também] os fatores biológicos, mais doenças nas plantas, menos polinização, por exemplo, e isso vai em algum momento se transformar em uma perda de produtividade [para o agronegócio]”, explica. 

Para ela, as grandes empresas do agro em Mato Grosso, apesar de terem planos e projetos de sustentabilidade, não têm conseguido refletir a sua conscientização em dados, como, por exemplo, o de zerar o desmatamento. Por isso, ela defende que o assunto deve ser tratado com urgência, através de políticas de rastreabilidade, que possam diferenciar quem realiza ou não o desmate ilegal.

“Não estou aqui querendo generalizar, mas por falta de mecanismos de rastreabilidade voce nunca sabe se aquilo ajuda ou não o desamatmento ilegal. A questão de implementar compromissos de rastreabilidade é uma questão que é emergencial e que precisa de forças tarefas para realmente acontecer. É preciso liderança por parte desses atores privados para poder fazer realmente a separação entre quem desmata e quem não desmata, e aí, zerar o desmatamento”, esclarece.

Leia a entrevista completa:

OD: Alice, antes de tudo, eu gostaria que você explicasse o que é o IPCC.

A.: O IPCC é um grupo de cientistas que falam sobre as mudanças climáticas. Ele é constituído por vários especialistas do mundo todo e trabalha com sistema de revisões de publicações, ou seja, eles fazem o apanhado de tudo o que está sendo produzido sobre o assunto que é extremamente amplo, de mudanças climáticas. 

Eles trabalhavam diferentes segmentos, diferentes temas dentro das mudanças climáticas. Eles documentam os impactos das mudanças climáticas, fazem projeções sobre as mudanças climáticas, ano após ano. É um documento bastante esperado, que costuma trazer notícias problemáticas. Nunca saiu um relatório do IPCC que falasse ‘ah não, a gente errou, a mudança climática não vai ser isso’. É sempre um alerta, um susto de dizer, ‘gente, tá indo mais rápido do que a gente tava achando’.

Eles mapeiam tantos os impactos de desaparecimento de geleiras, do impacto do desmatamento, impacto dos combustíveis fósseis, e, [no] ano passado, a grande notícia é que a gente já estava indo para um aquecimento global de 2 a 3 graus assim. O IPCC, na verdade, meio que mapeia os caminhos que o mundo está trilhando, o planeta está trilhando, de aquecimento e as consequências dele, desse aquecimento.


OD: Atuando na questão ambiental em Mato Grosso, você considera importante que as pessoas levem em consideração essa preocupação com os impactos que estão causando para o meio ambiente? Por quê?

A: Por estar trabalhando há 15 anos com o tema, uma grande questão também de sensibilização, quando a gente fala de mudanças climáticas, é [importante] elas entenderem que já estão acontecendo, essas mudanças climáticas, entenderem que desastres como as queimadas no Pantanal, são já efeitos das mudanças climáticas. A gente não tá falando de algo que vai acontecer daqui 5,10 anos. São coisas que já estão acontecendo, que as pessoas precisam começar a enxergar, enquanto consequência, enquanto necessidade de adaptação quanto às mudanças climáticas. 

OD: O rascunho do novo relatório do IPCC traz alertas do risco de queda de produtividade para o agronegócio brasileiro com o agravamento da crise climática. Existem estudos sobre isso no estado?

A.:
A gente trabalha com dados da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). A gente até pediu, no âmbito do fórum de mudanças climáticas, para o Eduardo Assad (da Embrapa) fazer essa simulação, essa projeção de perda de produtividade da agropecuária de Mato Grosso. A partir de dados, como por exemplo, aumento de temperatura, mudanças nos parâmetros de precipitações, mudanças nos parâmetros de evapotranspiração, ele consegue mostrar como vai se comportar a produção de soja de milho, de algodão e também a parte de pecuária, ele fez essa projeção até 2050. 

OD: Baseados nos impactos da mudança climática em Mato Grosso, que impactos esse estudo apontou para o setor agrícola no estado?

A.: Em termos de dados assim, o impacto das mudanças climáticas na agropecuária vai atingir vários fatores de produção. Atinge tanto pelo clima, quando você tem um aumento de temperatura de precipitação, mais incêndios, quanto pelos eventos extremos, ondas de calor, secas, desastres naturais, quanto pela qualidade do solo, você vai ter menos água nos solos, você vai ter erosão, os fatores biológicos, mais doenças nas plantas, menos polinização. Por exemplo, tudo o que está acontecendo com as abelhas. Isso vai, em algum momento, se transformar em uma perda de produtividade. 

É super interessante verificar que, assim, está estabelecido que Mato Grosso, os municípios vão ter um aumento de temperatura de 2 graus, isso é um fato até 2050. Quando a gente fala de mudanças climáticas, a gente, às vezes, fica pensando que é uma mudança, as coisa vão mudar e a gente vai sair da situação A para situação B, mas na real a gente provavelmente vai ter mudança nos padrões, que vão se prolongar, uma instabilidade que vai se prolongar. 

Quando você olha as décadas de 2020-2030-2040-2050, ele mostra que tem momentos diferentes de precipitação, de evapotranspiração,de calor, e isso vai penalizar de formas diferentes os anos. A gente vai ver, por exemplo, uma maior penalização entre 2030-2040, tanto para soja, milho ou algodão, uma queda de produtividade. Daí para 2040 para 2050 a produtividade vai aumentar de novo, mas em um patamar um pouco menor, então, está projetado a situação de que vai ter impacto no agronegócio, está extremamente documentado, baseado em dados públicos, oficiais, que isso vai acontecer.


OD: O novo relatório tem sido aguardado com muita expectativa por organizações ambientais e governos pelo mundo. Qual sua expectativa sobre essa nova publicação? Alguma expectativa?

A.:
Eu acho que, pra ser bem honesta e direta, a gente não precisa do novo relatório do IPCC. Não acho, necessariamente, que ele vai trazer grandes mudanças sobre isso. Já faz uns 15, 20 anos que a gente já sabe de tudo isso que tá acontecendo. A gente só está vendo esse cenário, talvez mais complicado, se verificar.

​OD: O que o agronegócio mato-grossense, assim como o brasileiro, tem que priorizar para reverter esse cenário que, conforme foi explicado, também pode encurralar a sua própria produtividade? 

A.: Cada ano tem a Conferência das Partes (COP), encontro da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC). A do ano passado foi muito específica sobre o papel do setor privado. Ela já entrou no detalhamento de algumas coisas que precisam acontecer. Não quer dizer que a COP trouxe muito progresso em termos de comprometimento, mas ela trouxe duas questões que foram bem fortes. 

[Tem] a questão da necessidade de reverter a perda de floresta. Quando a gente fala de agronegócio no Brasil, na Amazônia e no Cerrado, a gente tá falando de um agronegócio, não por inteiro, mas a gente está falando de um setor que está dando errado em algumas partes pela ilegalidade, pelo desmatamento ilegal. Quando voce olha os dados em Mato Grosso, voce vê que esse desmamtento ilegal, muitas vezes, é localizado em algumas fazendas. 

Não estou aqui querendo generealizar, mas o fato é que o agronegócio, por falta de mecanismos de rastreabilidade, mecanismos que garantem que aquela soja que está sendo exportada, que aquele boi, que a carne que voce come, por falta de mecanismo de rastreabilidade, voce nunca sabe se aquilo ajuda ou não o desamatmento ilegal. Aí a questão de implementar compromissos de rastreabilidade é uma questão que está emergencial e que precisa de forças tarefas para realmente acontecer. Tem o caminho das pedras, está bem delimitado, mas é preciso de liderança por parte desses atores privados para ter uma fala forte sobre a disponibilidade dessas informações, sobre o uso dessas informações , para poder fazer realmente a separação entre quem desmata e quem não desmata, e aí, zerar o desmatamento. 

Uma outra coisa que foi um grande compromisso, foi o compromisso sobre o metano. Quando você olha para a matriz de emissões de Mato Grosso, você vai ver que uma grande parte está ligada a ocupação da terra com bois, e aí a produção de metano. É algo que impacta muito, que tem uma grande parte da contribuição de Mato Grosso para as mudanças climáticas. Foi decidido na COP 26  uma diminuição de 30% das emissões de metano até 2030. Se a gente conseguir reduzir 30% as emissões de metano no mundo inteiro, até 2030, a gente chega a limitar o aumento das temperaturas a 1,8 graus.

Existem caminhos que estão traçados, que foram colocados, e também pelos quais existem financiamento, disponibilidade de recursos que precisam ser enxergados pelo agronegócio de Mato Grosso como uma possibilidade para limpar a matriz e se modernizar. 


OD: Que avaliação você faz da atuação e da pegada ambiental dos setores que compõem o agronegócio em Mato Grosso? 

A.:
Eu não diria que nada está sendo feito. Eu acho que por enquanto a gente não tem um sentimento de urgência. Quando você olha os grandes atores econômicos que atuam em Mato Grosso, as grandes empresas de soja, os grandes frigoríficos, eles trabalham com esse assunto a muito tempo, eles tem planos de sustentabilidade, eles tem propostas para limpar a matriz deles, eles têm uma mobilização sobre o assunto. A questão é que precisa de ainda mais liderança e de mais choque de gestão, que talvez ainda não estejam presentes. Seria injusto dizer que nada está sendo feito, a questão é que o ritmo, a ambição não estão condizentes com a urgência que estamos vendo. 

Acho que um processo está em curso. Antigamente, há uns dez anos atrás, a questão da sustentabilidade estava sendo tratada pelo setor de sustentabilidade, hoje em dia ela tá sendo tratada pelo setor de compra, ou seja, a gente subiu uma marcha na centralidade do problema. No entanto, a gente ainda não tem uma conscientização que consiga se refletir nos dados de desmatamento. No ano passado, o Mato Grosso teve uma taxa de desmatamento extremamente alta e (a conscientização) também não se traduz por sistemas de transparência de rastreabilidade. Hoje em dia, ainda muita coisa está precisando ser feita e a gente precisa de um acelerador nessa agenda de forma muito clara. 

O que eu insistiria é esse sentimento de urgência e da necessidade de entrar numa agenda muito mais de choque de compromissos pragmáticos e não daqui cinco anos. Daqui a cinco anos, a gente vai se comprometer em zerar o desmatamento da nossa cadeia, até 2040, sabe, a gente precisa de outras temporalidades.  


OD: Nesse cenário, o que pode acontecer de pior, caso o setor não se mobilize na mesma proporção das urgências que deverão ser impostas pelas mudanças climáticas? 

A.: Eu enfatizaria dois fatos. O agronegócio brasileiro que faz a matriz econômica de Mato Grosso girar, aquele que é de ponta, tecnológico, modernizado, que produz soja em Mato Grosso, é um agronegócio que precisa de dados e de estabilidade climática, mas isso a gente já perdeu. A gente já sabe que os [impactos nos] modelos de precipitação, modelos de evapotranspiração, estão acontecendo e vão acontecer.

O segundo ponto é que existe toda uma discussão ao redor do ponto de não retorno da Amazônia. Muita gente coloca a floresta Amazônica como pulmão do planeta, na verdade, ela é mais como um músculo, um coração para América Latina. Ela pulsa nas chuvas, até do sul do país, ela é fundamental para o futuro. O que a gente já sabe é que a gente tá muito perto desse ponto de não retorno, que seria um ponto de savanização da floresta Amazônica. Ou seja, toda a floresta que está mais perto da agropecuária, se tornaria um cerrado. 

Com isso a capacidade de bombear a água para o continente ela vai ficar mais reduzida e com isso a gente vai ter uma seca prolongada. A gente tem uma dificuldade, um certo fatalismo de ver todos os anos as inundações, esse ano na Bahia, em Minas Gerais, cada vez imagens impressionantes, mas (por exemplo), o Pantanal está em chamas porque as baías de água estão ficando cada vez menores. As inundações estão acontecendo porque as chuvas estão ficando muito intensas em um momento. Tudo isso já é impacto das mudanças climáticas e tudo isso impacta o agronegócio. 

A gente tá indo para um cenário onde a gente vai pouco a pouco desregular a máquina climática do planeta. É difícil te dizer assim (o que pode acontecer). O que eu sei é que em 2050 ainda vai haver condição de soja, milho, pecuária em Mato Grosso, vão ter dois a três graus a mais, vai ter uma chuva mais concentrada e mais desastrosa, mas vai ainda ter uma produtividade, depois eu não sei. Não é um cenário catastrófico, mas também não é um cenário de estabilidade. O planeta não vai acabar em 2050, mas as coisas vão ficar mais complicadas.

 
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